segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Favela nunca mais


Valor Econômico, Mari Olmos, 20/set

No primeiro andar de um dos prédios vê-se uma mulher abrir a janela da sala com vontade. Satisfeita, ela espia o que acontece do lado de fora, no térreo: entre a praça e a quadra poliesportiva, onde meninos jogam bola, um grupo de moradores ansioso pergunta se os visitantes são da Comgás, que ficou de concluir uma instalação por estes dias. Quem conhece um pouco a história do conjunto residencial Sílvio Bacarelli, em Heliópolis, entende por que abrir uma simples janela traz tanta felicidade. Moradores do primeiro ao quarto andar dos prédios da Cohab que escaparam do incêndio em 1996 passaram 15 anos sem poder ver a cor do céu pelas janelas.

Pilhas de barracos tomaram conta de um espaço, no entorno, em meio aos escombros do incêndio. A invasão tomou conta também de esqueletos das edificações de três prédios que não chegaram a ser concluídos. Agarrada à estrutura dos edifícios inacabados, nasceu uma favela vertical, que grudou nas paredes e selou janelas.

Prédios de dez andares e barracos amontoados até o terceiro ou quarto andares permaneceram colados entre 1996 e 2011, quando, então, a Prefeitura de São Paulo removeu as famílias que moravam na área para construir um novo conjunto habitacional, concluído há pouco. O antigo projeto da Cohab ganhou agora um "abraço" de moradias, que, além de bonitas, deixam a vizinhança respirar.

Nesse novo ambiente, os prédios antigos de dez andares unidos aos novos, de quatro, fazem parte do mesmo condomínio, batizado de Sílvio Bacarelli em homenagem ao maestro que, comovido com o incêndio em 1996, fundou um instituto para ensinar música em comunidades carentes.

O projeto bonito, que surgiu no lugar da antiga pilha de barracos, é assinado pelo arquiteto uruguaio Héctor Vigliecca, dedicado a habitação popular e urbanização de favelas muito antes de mudar-se para o Brasil, em 1975.

Para o arquiteto, projetos como os da Cohab ou Cingapura são "depósitos de prédios e de pessoas" e alguns "parecem mais uma cadeia"

Os trabalhos de Vigliecca nessa área em nada lembram o conceito clássico de moradia popular que se estabeleceu a partir de projetos como os da Cohab ou Cingapura, que ele chama de "depósitos de prédios e de pessoas". "Alguns parecem mais uma cadeia", afirma.

O maior orgulho do urbanista formado em Montevidéu foi ter conseguido, até agora, vencer o desafio de desenhar moradias graciosas respeitando os orçamentos apertados dos programas de habitação popular.

Vigliecca elogia a mudança de critérios das gestões públicas na escolha de arquitetos para os programas de habitação popular. É nas mãos de profissionais com alta dose de criatividade que hoje passam alguns dos projetos voltados às classes mais carentes.

"Antigamente os projetos eram gerenciados pelas construtoras, que escolhiam os arquitetos", diz Marcelo Rebelo, da Secretaria de Habitação de São Paulo e coordenador de projetos de Heliópolis. "Cingapura é a estética da pobreza; não trabalhamos mais com isso em São Paulo", destaca. O novo critério é um alento para profissionais como Vigliecca, que sente calafrios quando vê o que chama de "modelinho de casinha repetido como se fosse um carimbo".

O desafio em Heliópolis era grande. "Como trabalhar em uma coisa desestruturada?", perguntava-se o urbanista uruguaio. "A ocupação havia engolido os prédios como um câncer", diz. O arquiteto decidiu, então, criar em cima do "já feito".

As últimas unidades do conjunto residencial Sílvio Bacarelli foram entregues há poucos dias. Mas ainda se vê por lá um entra e sai de pedreiros, gesseiros e outros profissionais contratados por moradores empenhados em caprichar no acabamento.

O pedreiro José da Silva Alves já assentou boa parte de reluzentes peças de porcelanato no piso da sala e dos dois quartos do apartamento do filho. Está bonito. Pudera! Cada metro quadrado custou R$ 52. Para seu apartamento, localizado em outro bloco, Alves optou por acabamento mais simples. Mas nem por isso o imóvel se tornou menos aprazível. Alves exibe a sala e os dois dormitórios. No projeto, Vigliecca aproveitou um pequeno vão à entrada do banheiro para instalar o lavabo separadamente. Ao fim da cozinha, surge a área mais nobre, segundo a opinião dos moradores de Heliópolis: uma ampla área de serviço, com cinco janelões. Alves pega a trena e confirma: são 4,40 metros de comprimento por 1,40 metro de largura.

A área de serviço virou o chamariz dos projetos de Vigliecca em Heliópolis. É do mesmo arquiteto uruguaio o projeto de um conjunto concluído em 2012, que serviu de referência. Numa consulta prévia, os moradores informaram ao represente da Secretaria de Habitação o desejo de viver num conjunto igual àquele assinado pelo uruguaio em 2012, com área de serviço igualmente espaçosa.

"O déficit dessas áreas em conjuntos existentes transforma as fachadas num grande varal, fator de degradação ambiental e exclusão quando o comparado à cidade formal", diz Neli Shimizu, arquiteta e gestora de habitação de interesse social na equipe de Vigliecca.

Não é só na hora de lavar a roupa que o novo conceito de urbanização de favelas tem o poder de recuperar a autoestima de muita gente. Aos 61 anos, o cearense José da Silva Alves mora em Heliópolis há 32. Como agora é também um dos síndicos do novo conjunto, encarrega-se de, diariamente, abrir e fechar o cadeado da lixeira. O horário é rígido e ele não aceita lixo depois das 19 horas. Alves pensa agora numa maneira de proibir carros e motos dentro do condomínio, cujas vias não foram feitas para estacionar veículos. É ele também quem ajuda a cuidar dos salão de festas, equipado com copa e banheiros.

São as mesmas famílias que moraram nas áreas que misturaram barracos e prédios que agora voltam para o novo condomínio. Passaram cerca de três anos recebendo aluguel social da prefeitura, que hoje está em R$ 400. Mas a maioria tem que desembolsar mais porque a especulação imobiliária fixa preços acima desse valor na maior parte das casas alugadas na região. Para viver no apartamento do prédio novo, cada família pagará prestação calculada de acordo com a renda. Alves paga R$ 105 por mês.

Com casa mais bonita, cada um decora à sua maneira. Nos vidros das janelas compridas, que ajudam a deixar a luz natural entrar nas salas, veem-se desde cortinas bem-acabadas até película tipo Insulfilm. Aguinaldo Mariano da Silva e Francisca Xavier da Silva moram juntos em Heliópolis há 15 anos. Vão fazer a mudança com calma porque querem colocar gesso no teto e, pelo desejo de Francisca, comprar um sofá novo.

São também do arquiteto uruguaio projetos em outras favelas, como Paraisópolis, em São Paulo, e Portais, em Osasco (SP), além de Morro dos Macacos, no Rio. Mas não é só de habitação popular que ele vive. No sentido oposto, seu trabalho também entrou no projeto da rua Oscar Freire, uma das mais badaladas vias de butiques na região dos Jardins, em São Paulo.

Uma iniciativa da associação de lojistas em parceria com a prefeitura provocou uma drástica mudança na Oscar Freire em 2006. O ponto mais marcante foi o aterramento da fiação. Mas a reforma também fez surgir um passeio minimalista, liso e livre de obstáculos.

Quando alguém estranha seu envolvimento em mundos tão opostos, Vigliecca responde: "Não faço arquitetura para pobres ou ricos. Utilizo os mesmos critérios e a mesma ética". Os eventos esportivos também estão na sua mira. O mesmo arquiteto trabalhou no Arena Castelão, em Fortaleza, um dos estádios escolhidos para a Copa do Mundo de 2014.

Mas são os projetos de interesse social que mais lhe dão prazer. E prestígio. Há poucos dias, a revista holandesa "Mark", respeitada publicação de arquitetura, destacou o projeto Parque Novo Santo Amaro V, também de Vigliecca, como exemplo de um novo modo de lidar com favelas.

Além de moradias para famílias que viviam de forma precária em áreas de risco, sujeitas a enchentes e desabamentos, o projeto no Parque Novo Santo Amaro levou melhorias urbanas para uma área localizada em região de mananciais na zona sul de São Paulo.

É sempre desafiador, segundo Vigliecca, inserir o projeto de uma favela na paisagem do local, valorizando seus recursos. No caso de Santo Amaro, o verde, que havia sido extinto por causa da ocupação irregular, foi recuperado por meio de um parque linear. Para preservar a tradicional identidade dos moradores com a água foram criados espelhos d'água. E a região passou a ser abastecida por várias nascentes recuperadas.

A comunidade ganhou playground, pista de skate e campo de futebol. Se antes, para ter acesso à escola, as crianças tinham de atravessar um córrego poluído ou fazer longas caminhadas para contornar a quadra, com a urbanização foram criadas passarelas. "Muitas vezes se removem toneladas de terra para tornar plana determinada área. O desafio é criar um projeto que se incorpore à geografia do local. Não usar a geografia pode ser mais fácil. Mas significa desconstruir uma cidade ao invés de construir", diz o arquiteto, de 73 anos.

Santo Amaro fica mais de 30 quilômetros distante de Heliópolis. Mas parte das duas imensas comunidades tem agora em comum um modo de viver mais digno. Ao longo das três décadas em que mora dentro de Heliópolis, uma das maiores favelas do Brasil, com 65 mil habitantes, o pedreiro Alves sempre sonhou um dia ter uma casa que, com o tempo, passaria a ser sua propriedade e, mais tarde, quem sabe, uma herança para os filhos e netos. "Mas algo perfeitinho assim eu nunca imaginei."


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